Há cá dentro de mim uma menina que cresceu ouvindo vozes em sua cabeça; por mais amada e desejada que fosse, por mais carinho que recebesse, nada jamais preencheu o vazio que a acompanhara durante toda sua vida... Por vezes, as vozes sumiam e pareciam deixa-la em paz mas jamais por tempo suficiente para que pudesse construir uma barreira contra elas que, de tempos em tempos, retornavam mais altas e mais agressivas.
"Nunca boa o suficiente;Ela repetia em sua cabeça olhando para o espelho, jamais conseguiu entender por quê jamais sentira-se aceita; Não via possibilidade de ser por outros amada já que ela mesma não o fazia, nunca aprendera a se amar! E mesmo nos momentos de calmaria e silêncio, ainda assim, via-se perdida, a plenitude nunca a contemplou e por mais que sorrisse, sentia nos ombros o peso e o cansaço causado pela atitude simples, de conviver mais um dia consigo mesma.
Nunca bonita o suficiente;
Nunca interessante o suficiente."
Nunca soube ao certo lidar com os problemas, não tivera coragem de encarar a si mesma e não julgava ter forças para encarar aos outros, cada crítica esmurrava-lhe o rosto como uma pedra, um olhar mal-encarado rachava-lhe o chão e por vezes desejou que a Terra abrisse de fato para que lá pudesse se esconder do mundo. As emoções e os medos a abalavam e a desnorteavam de tal forma que, sofrendo, já não percebia meios de sobreviver. Se lhe perguntassem o que seria dali dez anos, teria na ponta da língua a resposta desejada mas secretamente, admitia para si mesma que não sabia nem mesmo se estaria respirando no dia seguinte. Imaginava constantemente quando chegaria ao seu limite, quando os sentimentos colossais que a abatiam conseguiriam sugar-lhe toda a energia, a ponto de mata-la. Um dia, ouviu de alguém que seu querido avô "morrera de tristeza" e não esboçou reação alguma, não poderia dar na vista que sabia exatamente o que se passava, que por anos, acreditou ser esse seu destino, talvez não pelas próprias mãos, talvez um dia seu coração simplesmente desistisse de mante-la viva ou seu cérebro, fatigado, desligaria, livrando-a da árdua tarefa que lhe era acordar mais um dia.
Ninguém sabia, ninguém a via aqui dentro. Essa menina sorria e gargalhava junto a mim, acompanhou todos meus passos e, imperceptível, continuou neste obscuro caminho de tristeza, auto-julgamento e solidão. Houve dias em que me vi só, mas ela retornava amiúde e, por mais que eu a tentasse ajudar, toda vez que nos encontrávamos ela parecia mais abatida: sentia-se, dia após dia, açoitada pela missão de viver.
Um dia, tomada pelo impulso vital de salva-la (pois desistir de tira-la do reduto de melancolia que se encontrava seria desistir de mim) dei ouvidos ao seu mais estridente grito, a mais dolorida das súplicas. Foi então que rasguei-me a pele e, pela primeira vez, sentimos juntas, eu e ela, a dor esvaindo, escorrendo pela coxa direita, em cor púrpura, pingando em meus pés. Dividimos o corpo, emprestei-lhe a mão para que tentasse expurgar o sofrimento e, a partir deste dia, todos os dias, ela vinha e tomava o que julgava ser seu por direito e eu, acuada, cedia-lhe não só a mão empunhando uma lâmina, mas também a pele para que pudesse, mesmo que por alguns minutos, sentir-se anestesiada.
Com o tempo, a dissociação extinguiu-se. Eu já não tinha a posse do meu corpo e a ela como inquilina, tornamo-nos uma só e cada vez mais, seu aspecto choroso e violento assomava e possuía como a um objeto, toda e qualquer ação do meu dia. Ela estava lá e agora não havia mais vozes em sua cabeça, ela tornara-se a voz. No princípio, sua agressividade emergia em situações de descontrole, quando tomada por emoções demasiado intensas, das quais temia não conseguir dar conta, mas não demorou até que ela tomasse as rédeas e me ferisse sem motivo algum. Divertia-se com o sangue, com a linha de cada corte e, mais tarde, até mesmo as marcas permanentes a traziam mórbido contentamento, eram lembranças eternas de tudo que um dia sufocou e escondeu, como se escancarasse até para si mesma a dimensão da sua dor. O prazer de ver com seus próprios olhos, de maneira tangível, cada grito contido, cada dia em que julgou ser o seu último, a inebriava, deixava-a sedenta por mais. Os cortes superficiais já não satisfaziam mais, toda vez que tomava a lâmina desejava ver mais carne, jorrar mais sangue, queria abrir o corpo todo... Uma vez, tomei violentamente meu corpo de volta, ao perceber fitando o espelho, que ela encostara seu instrumento em nosso pescoço e estava há milésimos de segundos de risca-lo, sabe-se lá quão profundamente. Como se esvaída de todas as forças, cai no chão do banheiro e em posição fetal me pus a chorar como nunca na vida, não entendia como chegara até ali, não sabia como expulsa-la de mim... Vivemos juntas toda uma vida e quando percebi, tornara-me escrava daquela um dia escravizada por sua tristeza. Alcancei o telefone e disquei os números que ao aparecerem na tela sempre causaram-me pânico:
- Mãe, preciso de ajuda.
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Continua.
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